Decidi iniciar a minha participação no Linhas com um tema que me é próximo: a Saúde Mental. Sou Médico interno de Psiquiatria e trabalho no Serviço Nacional de Saúde (SNS) desde 2014.
Estou certo que o vírus SARS-CoV-2 marcará um antes e um depois na sociedade actual. A globalização permitiu que um vírus altamente contagioso pudesse rapidamente chegar a mais de 150 países, colocando alguns dos melhores sistemas de saúde do mundo sob uma prova de fogo. Praticamente ninguém (à excepção de Bill Gates que o afirmou publicamente em 2015) esperava que a próxima crise mundial iria surgir através de um agente biológico. Até porque muito poucos se lembravam da última grande pandemia no início do século XX.
O Serviço Nacional de Saúde tem, até ao momento actual, mostrado capacidade de resposta, pese embora o profundo desinvestimento que sofreu na última década (atentem à despesa pública em saúde por percentagem do PIB, claramente abaixo da média dos países da OCDE). Essa resposta assenta fundamentalmente na diferenciação de alguns dos seus profissionais, e na constituição de equipas multidisciplinares, cujo trabalho é constantemente sabotado por administrações sem experiência clínica e com cartão de partido.
Enquanto que na fase crítica, o papel principal é desempenhado por especialidades como a Medicina Interna, as Doenças Infecciosas ou a Pneumologia, após o levantamento das medidas restritivas, a Psiquiatria e toda a rede da saúde mental assumirão uma missão fulcral. Alguns dados que começam a chegar de Wuhan na China, onde recentemente foi levantado o confinamento, mostram altas taxas de ansiedade, depressão e stress pós-traumático. A juntar a isto, não podemos esquecer dos doentes com doença mental grave, já de si altamente estigmatizados pela sociedade, e cujas vulnerabilidades clínicas e sociais se agravam no actual contexto. Será necessário que os serviços de Psiquiatria se reorganizem para darem resposta a uma enorme quantidade de solicitações que vão existir. Não será fácil, pois dentro do SNS, a saúde mental ficou sempre em segundo plano: não dá votos nas urnas. Os políticos gostam de anunciar números (número de cirurgias, número de consultas), e os ganhos em saúde mental não se medem só por números, mas sobretudo por ganhos em funcionalidade e qualidade de vida.
Terá de existir um investimento claro, através da contratação de profissionais, começando desde logo por médicos psiquiatras, muitos deles forçados a abandonar o SNS nos últimos anos, sem esquecer psicólogos e enfermeiros com formação em saúde mental. Tal como já acontece noutros países europeus, seria também muito útil ter auxiliares com formação diferenciada em Psiquiatria, pois poderiam libertar enfermeiros para tarefas mais diferenciadas e complexas.
Acredito que a sociedade portuguesa reconhece hoje mais que nunca o valor dos profissionais de saúde. Sei que muitos destes profissionais, hoje mais que nunca, sentem orgulho em serem portugueses e de ajudarem o seu povo na batalha de uma geração. Esperemos que os decisores políticos estejam à altura dos seus profissionais.
Comentários
António Ferrete
Seg, 2020-04-13 15:46
Nelson Couto, antes de mais os meus parabéns!
Infelizmente tardou ao povo a dar valor a quem realmente merece! A psiquiatria e a psicologia são cada vez mais importantes numa sociedade que vive para o trabalho! Mais ainda durante e depois desta mudança tão repentina... Aos poucos os verdadeiros valores estão a ser reposto mas ainda temos muito que caminhar!